segunda-feira, 14 de julho de 2008

Cão




"Putto e o cachorro", Masaccio (1427-1428)




Cão passageiro, cão estreito,
cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão amarrado, preso por um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia-a-dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão prefabricado,
cão espelho, cão cinzeiro, cão botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!

Alexandre O’Neill